segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Inexaurível Mundo Novo (versão completa prosa poética)


Inexaurível Mundo Novo

Parte I

Há tardes em que me sento, de olhar fixo para lá da janela e nada me ocorre senão diluir-me nas cores que enchem a retina.
Então as formas perdem um significado; gradualmente, deixam de ser úteis ou convictas, caindo por terra como pedaços de origami, esquecidos.
Nesses momentos, o mundo é uma coisa difusa, intensamente onírica e tudo decorre numa doçura líquida, de evocações infanto-juvenis.

Parte II

E então de repente daquela superfície amorfa, colorida surgem relevos, sombreados que se acentuam, recriando uma realidade a 3d, sobreposta à que a subjaz.
Noutro dia, no meio de tais contemplações, deparei-me com uma senhora que estendia a roupa numa corda levantada por dois paus.
Ela vestia uma bata, feia, de matiz dourado, familiarmente cinzenta com um padrão a lembrar vértices e formas angulares.
A roupa sacudia-se ao vento da manhã e o sol, esse olho-mãe cósmico, ofuscava-a e a mim, quase.
Parte III

Tudo se passava numa espécie de pátio, cimentado, com arrumos num dos lados. Ao longe, por detrás de prédios, erguia-se,ensimesmado, o campanário de uma igreja, branco, em forma de zimbório, ocultando vestígios de pura religiosidade.
E assim, neste novo mundo, os detalhes iam nascendo da minha própria vontade de observação, mais ou menos detalhada, à semelhança de uma paisagem digitalmente elaborada.
Por exemplo, conseguia ver as ervas crescendo entre as rachas, no cimento ou as formigas trilhando paredes num passar oblíquo e alheio; mas também a silhueta de corpos magros, incertos, revelando modestas distracções atrás de cortinas de voil.
O que, no entanto, mais estranheza me causou, foi uma invasão de cães rafeiros, que em matilha e ocupando uma superfície nesta tela surreal, fluíam da direita para a esquerda e vice-versa, em constante alternância de direcção.
Então apercebi-me que tudo se passava dentro de um copo; uma mão omnipresente - sim tal era o caso nesta minha consciente alucinação – segurava-o, abanando-o, assim causando essa oscilação.
Porém, tudo o resto permanecia fiel ao comportamento esperado, ou seja, senhora, corda, roupa, casas e igreja, tudo isso era agora como uma cena submersa ou numa apropriação digital, camada que tivesse sido fixa, protegida de alterações à posteriori.
Nesse momento, estupefacto com tudo o que aparentemente decorria de uma forma sensorial à minha frente – sim, era essa a impressão! - ocorreu-me ser eu próprio, a dirigir o guião da minha privada loucura caseira e então com a força da minha vontade pensei na mão como minha – sim apropriação será o termo - tendo de seguida pousado o copo, cuidadosa e vagarosamente, entornei-o.

Parte IV

A massa de água era agora, uma coisa transitória no espaço e homogénea no tempo; os cães não eram mais que partículas de impureza revolvidas no fluxo que a ligava à terra. E, à medida que o fio de água condutor vazava o copo, tudo presente na camada inferior – senhora, roupa, corpos, zimbório - se diluía numa matricial força externa.
Para todos os efeitos, era como se a água, ao ligar copo e terra, me transferisse delicadamente do meu novo para o velho mundo. Nada disto foi premeditado. Nada foi desejado, para lá das opções tomadas no limiar de cada momento.
O reagrupamento, deu-se naturalmente – de novo as cores encheram as formas e estas adquiriram a utilidade conhecida.
Voltei a ver o azul da piscina, na piscina e o verde das folhas, nas folhas; os carros estacionados no sopé do muro de pedra, o prédio dos vizinhos, a roupa na varanda, o bambu nas traseiras do jardim e o céu, esse voraz companheiro – tudo se refez, de novo.

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