Inexaurível
Mundo Novo
Parte
I
Há
tardes em que me sento, de olhar fixo para lá da janela e nada me
ocorre senão diluir-me nas cores que enchem a retina.
Então
as formas perdem um significado; gradualmente, deixam de ser úteis
ou convictas, caindo por terra como pedaços de origami, esquecidos.
Nesses
momentos, o mundo é uma coisa difusa, intensamente onírica e tudo
decorre numa doçura líquida, de evocações infanto-juvenis.
Parte
II
E
então de repente daquela superfície amorfa, colorida surgem
relevos, sombreados que se
acentuam, recriando uma realidade a 3d, sobreposta à que a subjaz.
Noutro
dia, no meio de tais contemplações, deparei-me com uma senhora que
estendia a roupa numa corda levantada por dois paus.
Ela
vestia uma bata, feia, de matiz dourado, familiarmente
cinzenta
com um padrão a lembrar vértices e formas angulares.
A
roupa sacudia-se ao vento da manhã e o sol, esse olho-mãe
cósmico, ofuscava-a e a mim, quase.
Parte
III
Tudo
se passava numa espécie de pátio, cimentado,
com arrumos
num dos lados. Ao longe, por detrás de prédios,
erguia-se,ensimesmado, o campanário de uma igreja, branco, em
forma
de
zimbório, ocultando vestígios de pura religiosidade.
E
assim, neste novo mundo, os detalhes iam nascendo da minha própria
vontade de observação, mais ou menos detalhada, à semelhança de
uma paisagem digitalmente elaborada.
Por
exemplo, conseguia ver as ervas crescendo entre as rachas, no cimento
ou as formigas trilhando paredes num passar oblíquo e alheio; mas
também a silhueta de corpos magros, incertos, revelando modestas
distracções atrás de cortinas de voil.
O
que, no entanto, mais estranheza me causou, foi uma invasão de cães
rafeiros, que em matilha e ocupando uma superfície nesta tela
surreal, fluíam da direita para a esquerda e vice-versa, em
constante alternância de direcção.
Então
apercebi-me que tudo se passava dentro de um copo; uma mão
omnipresente - sim tal era o caso nesta minha consciente alucinação
– segurava-o, abanando-o, assim causando essa oscilação.
Porém,
tudo o resto permanecia fiel ao comportamento esperado, ou seja,
senhora, corda, roupa, casas e igreja, tudo isso era agora como uma
cena submersa ou numa apropriação digital, camada que tivesse sido
fixa, protegida de alterações à posteriori.
Nesse
momento, estupefacto com tudo o que aparentemente decorria de uma
forma sensorial à minha frente – sim, era essa a impressão! -
ocorreu-me ser eu próprio, a dirigir o guião da minha privada
loucura caseira e então com a força da minha vontade pensei na mão
como minha – sim apropriação será o termo - tendo de seguida
pousado o copo, cuidadosa e vagarosamente, entornei-o.
Parte
IV
A
massa de água era agora, uma coisa transitória no espaço e
homogénea no tempo; os cães não eram mais que partículas de
impureza revolvidas no fluxo que a ligava à terra. E, à medida que
o fio de água condutor vazava o copo, tudo presente na camada
inferior – senhora, roupa, corpos, zimbório - se diluía numa
matricial força externa.
Para
todos os efeitos, era como se a água, ao ligar copo e terra, me
transferisse delicadamente do meu novo para o velho mundo. Nada disto
foi premeditado. Nada foi desejado, para lá das opções tomadas no
limiar de cada momento.
O
reagrupamento, deu-se naturalmente – de novo as cores encheram as
formas e estas adquiriram a utilidade conhecida.
Voltei
a ver o azul da piscina, na piscina e o verde das folhas, nas folhas;
os carros estacionados no sopé do muro de pedra, o prédio dos
vizinhos, a roupa na varanda, o bambu nas traseiras do jardim e o
céu, esse voraz companheiro – tudo se refez, de novo.