segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Nem Rosas Nem Lágrimas

Nem Rosas Nem Lágrimas

I
Dever-me-ia enlevar
pela sua mundanidade, mas
esta cidade desgosta-me;
as suas avenidas novas, largas e
outrora modernas
entristecem à sombra tórrida
dos plátanos
envelhecidos a monóxido de carbono
e a resíduos de incineradoras
hospitalares

Existe algo de marroquino - na sua
vertente francesa - porém pecando por
excesso de organização e
previsibilidade;
nesta cidade, desconheço
o nome das ruas e das
pessoas – todas me parecem
lorpas, mesmo as mais ousadas
no requinte, dúbio e nas vestes simples ou
elaboradas

Das esplanadas, o odor amargo-doce
do café, o burburinho atlântico
da espuma creme, desfazendo-se
nas margens cerâmicas
polidas, das paredes onde
bêbados, loucos e drogados
se encostam e espreitam
ensimesmados

Nas arcadas, vendedores
de rua apalpam o chão enquanto
se vendem com ladainhas ensalivadas
a galôes e bagaço; nos bolsos
as migalhas do pequeno almoço
entre moedas e mortalhas

II
Detesto as donas de casa, os engravatados
e os doutores, só por
serem ou estarem
nesta cidade

onde
me falam de paços, bibliotecas, parques
teatro, cinema, arte;
falam-me de tradição, cultura, conhecimento
mas eu vejo é corredores de macas
incógnitas, pessoas gemendo
incógnitas à espera de (...)
e salas de um branco sujo e
enfermeiras de batas roçadas, sujas
e tudo ligeiramente impregnado em
formaldeído e distância
e as visitas de domingo e as esperas
e a viagem de carro e a pastaleria onde
comprávamos os suspiros e os
compais que escondiamos entre os
cobertores ruços – na esperança;
depois, à saída, as mesmas pessoas mas
ao contrário – os pés direitos, os tubos
de respiração, as faces esquálidas
num bocejo inacabado
e as enfermeiras
indiferentes, passando
sem tocar

na solidão, penso. Depois
desligo até ao próximo
domingo

III
A horas
as colinas fecham
horizontes e o rio, afrouxa
sem saber se há de correr para
jusante ou tornar súbito
às serranas origens

O penedo, esse
lá fica
transpirando saudades
nesta cidade, sem rosas
nem lágrimas, onde 
nem a morte
quis ficar.


© 2016, José Coelho


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