quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Considerações Baronescas

Considerações Baronescas

I
Todas as manhãs ocupo a posição do sol
da mesma colina do declínio, observo o fascínio
Iludem-me os desnexos das constantes repetições
no dia que entra. A jorros de noroeste
um contínuo sacudir de estevas e acácias ensaia o vento
e envolve

a desconhecida que veio para o funeral do irmão
o músico organista de feições graves e funestas
o café central e toda a sua horda de clientes sabáticos
os cães livres de trelas e donos
os poetas plantados pelo caminho que é deles
os que, sendo poucos, fazem muito
os que, sendo muitos, fazem pouco
os que gemem e riem, alto, enquanto existem
os que leêm, seduzidos ou esquecidos
da nostálgica complacência dos que longe
os exaltam e excedem no olhar
os condoídos, de bíblia de bolso sempre na mão
reféns de uma fé amarelecida pelo tabaco
nas ponta dos dedos e fotos da Nossa Sra de Fátima, suadas
nas bordas e ainda os velhos, sentados, sonolentos
ao redor de mesas, como virgens apascentadas
pelo ocaso da vida

II
Todas as manhãs, subverso, deslizo sobre a terra
e faço-me um Deus-sol a repartir humanas e cansadas
peleias

Pelas ramadas e muros alvos cresce
a forma abstracta
por dentro alheia, à cor e ao cheiro
circunscreve a ideia de
paz e antípoda

    [deixando de querer
      vive-se, tolera-se uma presença presa]
apenas ancorada nas sombras
das árvores que ouso olhar
seduz-me o dom dos pequenos vícios presentes
no verso das paisagens

III
Todas as manhãs, uma imensidão de objectos
descartáveis, passa e sopra uma oração
surda

[Senhor, a verdade é que não
sou igneo, por certo morri já, frio e apenas
me invento numa loucura de estio]

onde a alma se esgota. Deixei de tolerar
o adeus; das pessoas reduzo-me a uma
frase sintética, tipo – etiqueta oceânica, sem sal
e esquivo-me à intimidade de gestos
lunares

Deposito uma hóstia de cinzas
num delírio de corações cremados e aceno
ao indelével contorno dos campos onde
corpos renascem

sempre.

© 2017, José Coelho

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