quarta-feira, 10 de maio de 2023

100 Milhas no PNPG

TPG 100M ou A Minha Experiência das 100 Milhas no PNPG


Correr 100 milhas requer alguma preparação, física e mental. E susbtancialmente, tempo de preparação. É bom fazer um plano de treinos que se adeque aos seus objectivos. Quase qualquer opção será melhor que nenhum modelo de treinos, embora um plano desenhado por um profissional possa ser mais eficaz. No meu caso, em que o objectivo era fazer o melhor tempo possível com o menor esforço - sim, tudo muito relativo, o que é um bom tempo, o que é o menor esforço - o meu treino físico baseou-se em consistência, volume e maioritariamente baixa intensidade.


Estava um pouco receoso com o decorrer da prova, já que a minha anca esquerda, durante os treinos, continuava a dar problemas. Apesar de ter recorrido a ajuda de físio, a lesão, que se desenvolveu a ponto de me ter feito submeter a minha 1ª desistência na ultra do Sicó, ainda estava presente e seria preciso gerir bem a intensidade das descidas. Essa parte era possível, já quanto à kilometragem, não haveria nada a fazer...


Ao contrário do que se ouve dizer, não partilho da opinião que as ultras são acima de tudo uma batalha mental. Essa parte existe mas na minha opinião ambas concorrem com igual peso para o sucesso da prova. Enquanto a forma física for boa, a mente pode apreciar a paisagem e literalmente ter prazer na corrida. Quando a energia física vai a baixo ou quando alguma parte do corpo se queixa, a mente deve entrar em acção, estimulando o corpo a continuar, sugerindo

estratégias para uma solução ou simplesmente ordenando o corpo a continuar. Se estes momentos se prolongam demasiado então poderemos entrar em rutura física e mental, mas antes que isso aconteça, cabe à mente propôr, no terreno, a melhor solução. Existem patamares ou lesões para os quais, por mais resiliente que a mente seja, o corpo nada pode fazer. Já tive cãibras tão fortes nas pernas, que por mais que a mente quisesse, não havia volta a dar senão esperar que passassem, eventualmente parar ou caminhar e tentar inverter a situação com ingestão de gél, sal, electrólitos, o que por experiência, melhor resultar.


Bom, mas vamos ao caso desta específica corrida, a das 100 milhas, no Parque Nacional da Penêda Gerês. 1º acho importante referir que isto é muito mais que uma corrida. A partir do km 50 (este número é apenas uma referência individual) entra-se numa espécie de bolha de sobrevivência onde o foco se vai estreitando e adequando às necessidades de conseguir terminar. A partida deu-se do castelo de Melgaço, pelas 11 da manhã, após viagem de autocarro de Montalegre para Melgaço. Viagem atribulada por razões de natureza secundária onde o jogo psicológico já se fez sentir. Tudo correu como previsto, para além de me ter esquecido da bexiga de hidratação em casa. Felizmente tinha levado duas flasks extra de 500ml cada, caso à última da hora optasse por esse sistema. A bexiga vai atrás na mochila, o que tende, com o peso a puxá-la demasiado para trás, sendo porém um sistema de cómoda utilização. Já as flasks, vão à frente e tendem a equilibrar melhor o peso total da mochila. Ergonómicamente, não são tão fáceis de utilizar e por vezes cansam demasiado. Mas, bem colocadas e percebendo bem o sistema da tetina - pormenor que me falhou nas 1ªas utilizações - são igualmente boas e neste caso acabou por se revelar a melhor opção, precisamente pela distribuição do peso.


Chegámos com tempo para recolher dorsais, preparar e entregar os sacos de vida, tomar o pequeno almoço, beber café (tomei dois), passear pelas redondezas, ir à casa de banho e conviver no espaço da partida - o interior do castelo. Os momentos antes da partida, nem sempre são dos melhores, por vezes chove e faz frio ou há demasiado stress ou pouco tempo para preparações, mas desta vez tudo se proporcionou de forma agradável. O tempo também ajudou!

Estava previsto calor para 6ª feira e realmemte assim foi, não demasiado como o ano passado mas sim, calor. E àquela hora da manhã, enquanto aguardávamos pelo toque do sino, escutando discursos de protocolo e afins, estávamos envoltos numa verdadeira sensação de paz e de bem-estar, pelo menos, falo por mim.


Estes inícios agradam-me, há um convívio saudável que não termina com a partida mas, bem pelo contrário, se prolonga pelos trilhos e etapas. Nos 1ºs kms tento ir devagar, sem pressas, lembrando-me do pré-estabelecido. Aproveito para conversar com quem segue a meu lado, abrando nas subidas, não cedendo à tentaçao de usar energias que parecem fáceis e convidativas. Tinha levado a banda peitoral e decidido não ultrapassar os 125bpm nos 1ºs 30 kms, o que rápidamente se mostrou impraticável: por um lado depois de uma noite mal dormida, uma viagem de 2h de autocarro super stressante, dois cafés e a adrenalina da partida, o sistema fica já por si acelerado, por outro, tinha decidido usar o relógio em modo ultratrac de forma a tentar que aguentasse até ao fim sem necessidade de recarregamento; ora neste modo os bpm não são moniotorizados. Daí que tinha pensado usar uma aplicação do tlm que também regista os batimentos, mas a ligação correu mal e desisti. Acabei por monitorizar os bpm no relógio durante esses 30km mas sem impôr a restrição dos 125. Deixei-me guiar pela sensação de esforço e pelo medo que a minha anca começasse a guinchar. Acho que correu bem, apesar de a anca efectivamente ter começado a queixar-se por volta dos 30 kms – o que já foi bastante bom! - e assim ter-se mantido até ao km 50, por altura da 1ª base de vida. A partir daí e por obra de que santa não sei, a coisa foi-se esmorecendo até que deixei de me lembrar dela. Talvez tenha contríbuido o gel que apliquei na coxa e sem dúvida o esforço moderado até então. De referir ainda que gostei muito desta 1ª etapa, bonitas paisagens, aldeias pitorescas, muitas vacas, boa companhia e espaço para pogredir a solo. Se bem me lembro depois de uma 1ª subida algo extensa onde alguns corredores sofreram com o calor, tivemos muito terreno aberto e de desnivel aprazível, bom para correr. Passámos pelo castelo do Soajo, por Castro Laboreiro e inúmeras povoaçõeszinhas aparentemente desabitadas onde o gado reinava. A partir das 6 da tarde foi curioso verificar como as vacas e bois regressavam em grupo ou parelhas, sozinhas, dos pastos para os currais. Por vezes cruzámo-nos em veredas muradas, tipo trilho individual; elas olhavam-nos, desconfiadas e devo admitir que com aqueles cornos pontiagúdos metiam algum respeito. Felizmente são animais pacíficos.


Já em pleno crepúsculo, comecei a atacar a Serra Amarela e aqui vieram as 1as surpresas e os 1os testes à condição física e mental. Como tinha dito a uma corredora com quem partilhei alguns kms até à 1ª base de vida, esta 2ª etapa até ao Gerês seria, na minha opinião o “vai ou racha” da prova. Depois dos 50 começa o verdadeiro teste à capacidade de endurance face ao esforço já aplicado; além disso vem a noite, o que para muitos é motivo de insegurança. Para mim, a noite é e tem sido boa companheira, passo-as ainda mais desligado que de dia, como se viajasse num comboio observando as luzes do ambiente, protegido, descansado, numa espécie de meio artificial. Sim, sei que tenho sido favorecido, até à data ainda não apanhei nehuma tempestade noturna – há de vir! Mas, como estava a dizer, a serra Amarela revelou-se colosso atrás de colosso e aqui jáz a diferença do percurso deste ano e do ano passado. A minha memória de 2022 dizia-me que a serra Amarela era uma subida longa, não muito ingreme, e que uma vez lá em cima era planalto durante vários kms. Claro, em parte a noção de esforço estava amenizada pelo facto de em 2022 ter sido o início do percurso; agora já levávamos 70k ou por aí, em cima. Além do mais, como houve alteração do percurso à ultima da hora, este ano não iniciámos a subida pelo Lindoso. Tudo isso alterou a orografia do percurso bem como o esforço a ele associado. Pelo caminho, iria a procissão a meio do 2º colosso, deparo-me com um atleta que se tinha sentido mal. Não estava sozinho, tinha a equipa a apoiá-lo. Perguntei se era preciso alguma coisa, mas mandaram-me seguir. Ainda, algures nesta serra, começámos a ser ultrapassados pelos 1ºs dos 100K. E que brida levavam!

Após o 3º colosso a coisa amainou e deu para voltar a correr. Nesta fase da etapa fui longos kms acompanhado de pessoal dos 100km que me deram a entender que, se os acompanhava ou eles a mim, é porque ia bem e realmente ia. Mais à frente iniciou-se a descida para Vilarinho das Furnas. O ano passado apertei bem nesta descida, este ano fui bem mais cauteloso pela anca e pela distancia total. Apesar disso, mantive um ritmo bom e ultrapassei alguns corredores. A descia é longa, técnica e pouco confortável para tudo – pés, ancas, pernas!

Sabia que algures nesta etapa viria mais um obstáculo de peso - a Fenda da Calcedónia, mas não tinha certezas quanto ao local exacto. Admito que da fotografia global e após 165km, muita coisa fica vaga e nem tudo bate certo, por isso desde já aviso que pode e haverá falhas em relação a locais e contextos. Continuando, a Fenda de Calcedónia, fruto do que ficou impresso da prova dos 100km, surgia-me na memória como 3 vezes menos imponente e 3 vezes mais fácil de ultrapassar – suponho que seja o efeito volume de kilometragem! Ainda hei de passar aí de dia, deve ser magnífico, mas fico contente que nesta prova, o tenhamos feito de noite. Aliás, falando da noite, esta estava mais fria que o ano passado, mas não em demasia. Eu tinha mudado de t-shirt de mangas curtas para uma de mangas compridas, do clube e tive calor com ela. Portanto a noite, para correr, estava ideal – boa temperatura, boa visibilidade, sem vento. O uúnico local onde tivemos nevoeiro foi a meio da subida para a fenda, até ao cimo e depois dissipou-se. Ultrapassada a fenda, voltámos a poder correr, desta feita e no meu caso, mantive um corridinho até à vila do Gerês, onde cheguei pelas 4:15 da manhã.


Acho que tinha havido festa e ainda havia muitos vestígios de cerveja e foliantes. Nesta vila tinhamos a 2ª base de vida. Tinha planeado tomar aqui banho mas desisti da ideia. Mudei de meias, limpei as sapatilhas, hidratei-me convenientemente e comi uma sopa. Depois prossegui para aquilo que sabia ser mais uma subidita até à Pedra Bela. Uma coisa diferente que fiz este ano, foi preparar uma bebida caseira à base de legumes e fruta para cada base de vida. Essa aposta revelou-se compensadora. Deixei a Vila do Gerês ainda em plena noite, fiz a subida à pedra Bela nas calmas e só após comecei o meu corridinho emergido em bancos de nevoeiro que dificultavam a visibilidade das fitas reflectoras. No entanto, nesse lusco-fusco que foi surgindo, evidenciavam-se bosques frondosos, pastagens e já de dia uma cascata de uns bons 20m (diria) e com vários andares, plena de força. Todo o percurso até ao Cabril decorreu numa amena solitude agradável. Se no final da subida para a Pedra Bela tinha ouvido vozes ao meu alcance… , estas entretanto tinham desaparecido e nunca mais voltei a dar por elas. As energias iam normais, digamos, para o que se podia esperar, embora a média estivesse um pouco abaixo do que eu tinha idealizado. Por vezes penso que o que me trama, é o tempo que gasto nos postos de abastecimento, onde geralmente volto a ser ultrapassado pelos que ultrapassei durante o percurso. Estes são muito mais rápidos a comer ou precisam de menos tempo. Já eu por mim, fazia um banquete em cada posto! Mas, mesmo assim acho que estive melhor! E no computo geral, comparando os 100km de 22 com as 100M deste ano, acho que tive, nas 100M, menos fossas (periodos de baixa energia) e estas foram menos graves que nos 100km. Também cheguei ao fim com mais potência, mas disso já falaremos. No entanto, analisando as estatísticas, se em 2022 consegui correr ligeiramente acima dos 5km/h, este ano fiquei-me pelos 4,9km/h. Sim, não fará muita diferença e até acredito que, mais umas milhas e teria igualado a média!


Aquando da curta estadia na sala de repouso do Gerês, tiha reparado numa atleta que saiu ainda lutava eu por calçar de novo as sapatilhas. Durante os troços enquanto corremos, pelo menos comigo, vão surgindo pequenos objectivos que nos fazem navegar entre postos; neste caso a certa altura lembrei-me dela e pensei que seria estimulante se conseguisse alcançá-la. Não aumentei a velocidade para esse propósito, apenas me mantive consistente mas já ia quase a completar os 20km que separavam o Gerês do Cabril e dela, nada. Até que quando alcanço a última descida antes do rio, a vejo a atravassar a ponte, acompanhada de um cão. Fiquei mais descansado, tinha andado a encurtar distância.. já não era mau.


Por esta altura, o ano passado estava um calor exagerado. Felizmente este ano o tempo estava meio encoberto. A chuva prevista, não se concretizou, a temperatura manteve-se mais suave o que facilitou a progressão.

De novo, neste posto de abastecimento, tentei ser o mais rápido possível, embora vários corredores tenham voltado a sair antes de mim. Notei que este ano a diversidade e quantidade exposta nos tabuleiros das mesas – falamos de comida variada – era mais pobre. Tomei um café, no estabelecimento mesmo ao lado (sim, desta levei dinheiro) e prossegui. Os recomeços, começavam a fazer-se sentir, como se o corpo aproveitasse todo e qualquer sinal para desligar os vários sistemas e deixar-se imobilizar. Portanto, é nestes momentos que entra em grande parte a destreza mental para contrariar a moleza corporal que se instala sempre que há uma oportunidade para tal. E esta etapa, Cabril – Paradela, foi um bom exemplo disso.


Começo lento,... lentíssimo, e vou vendo pessoal a passar-me que já tinha deixado para trás. Iniciamos a subida do Cabril e sou apanhado pelo namorado da atleta que tentei alcançar na etapa anterior. Conversamos um pouco e eu tento acompanhá-lo. Aos poucos vou sentindo o corpo a responder outra vez aos estímulos da mente e decido apostar na subida de forma a fazê-la em bom andamento. Rápidamente os deixo para trás e começo a encurtar distância entre outros corredores que me passaram logo no início. Dou por mim a ter prazer na subida e isso estimula-me e mantenho um bom ritmo. Mais acima, vejo alguém que pensei ser uma turista a passear. Quando passo por ela, é uma das fotógrafas do evento com a qual já me cruzei diversas vezes. Continuo e depressa se inicia uma das partes mais belas desta etapa – um percurso com pouco desnível, ao longo de uma levada ora subterrânea, ora à superfície. O caminho é estreito e sobe suavemente por um lindo vale. O ano passado, por aqui só conseguia andar e ia frustado com isso; este ano mantive um corridinho agradável, ultrapassei (finalmente!) a atleta da etapa anterior, cujo namorado vinha mais atrás e prossegui. Uns kms à frente começámos a descer e eu ia reconhecendo a paisagem como peças de um puzzle que imaginássemos diferentes mas se iam adaptando à realidade. Entro num caminho de terra batida e vejo ao longe bombeiros, alguns carros e pessoal da organização. Ouço palavras de encorajamento, o que resulta sempre! A patrtir de aqui a coisa foi esmorecendo um pouco. Por um lado, imaginava que a Paradela estivesse mais perto, por outro, deixei de reconhecer o caminho embora me lembrasse perfeitamente do posto de abastecimento, e a cada curva comecei na expectativa de que finalmente surgisse algo reconhecível. Quando se entra neste jogo, é mau sinal. Tento contrariar mas sem grande sucesso.. há que aguentar. Chego por fim ao local do ano passado, mas este ano o posto não era aí mas uns kms mais à frente. Passo a barragem a correr mas paro na outra margem e caminho até ao posto. Definitivamente, sinto-me desmoralizado. Penso ser o factor “hora de almoço”, que na verdade nem sei bem se é ou não – após uma noite sem dormir e a correr a sensação de meio dia antecipa-se e dou por mim a dizer boa tarde às 10 da manhã.


Ora, Paradela era a última base de vida. Tinha acesso aos meus pequenos luxos, desde sumo caseiro, mais frutos secos, géis, barras, nova roupa e sapatilhas alternativas, só para o caso...

Bom, eu desta vez tinha feito uma distribuição rigorosa de géis, electrólitos, barras, etc de cordo com os kms entre bases e distância já percorrida. Mas tudo correu como não planeado... começámos com uma alteração de percurso de última hora, derivado às nidificações das águias reais, segundo justificação oficial da organização, razão desmentida por quem privou com o organizador, mas claro podem ser só boatos. Mantive tudo na mesma, por ser já tarde de mais. No terreno, na prática, acabo sempre por consumir muito poucos géis – ao fim do 3º já estou farto e só tomo, mesmo se imprescindível. As barras têm um sabor artificial, o electrólito em pó, soube-me a sabão ou algo pior e acabei por usar apenas o fornecido pela organização que serviu perfeitamente. À medida que os kms passam, todo esse tipo de suplemento me repugna, prefiro o meu gel energético caseiro, frutos secos, uma boa sopa, fruta e mesmo uma massa com carne. De forma que para a próxima acho que vou apostar mais nisso ou experimentar outra marca.

Quanto à roupa, apenas troquei de meias e camisola – estava ainda a usar a do clube de mangas compridas desde a base nº1 e agora era demasiado quente.


Por norma, a etapa seguinte – Paradela, Pitões – tem sido consistentemente das mais duras, física e psicológicamente, não por ter uma altimetria superios às outras – nem de longe – mas por ser no pico da tarde, por levar a barriga cheia e por ser assaltado por um cansaço que me limita os níveis de energia ao máximo. Esta vez não foi excepção, pelo menos no início e apesar do tempo estar mais suave que nas últimas duas edições, o calor fazia-se sentir. Não obstante eu sabia que tinha de lutar e comecei desde cedo a contrariar a vontade do corpo. Accionei a marcha lenta mas consistente e depressa dei por mim a ultrapassar o casal de namorados (que entretanto tinham partido novamente à minha frente!) e mais um corredor que, sem eu saber, estava a competir directamente comigo para o 3º lugar da minha classe etária. Eu raramente vou a reparar nos dorsais e muito menos tenho ligação ou vontade de andar a verificar a minha posição no aplicativo que segue a prova ao vivo. Tento fazer a minha corrida e claro que luto por uma boa posição mas gosto de ir às cegas para não gerar stress nem expectativas desnecessárias. Mas, pelos vistos, este colega sabia da minha existência, porque não gostou da minha ultrapassagem e eu que pensava que o ia deixando cada vez mais para trás, a certa altura apercebo-me que ele estaria a uns 25m de mim. Aquilo abriu-me o apetite da picardia e respondi acelerando e mantendo. Passaram uns kms quando reparo que o meu relógio estava com 1% de bateria, então e como fazia calor, parei no 1º arbusto de porte médio que encontro à beira do caminho – estávamos numa zona com poucas árvores, à beira de uma albufeira que fica na base de Pitões – para carregá-lo na power-bank. Enquanto retiro tudo da mochila, ainda por cima para verificar que a tinha deixado no último saco de vida – esse atleta passa-me e até Pitões nunca mais o vi.

O caminho para Pitões é muito bonito, seguindo, com alguns desvios, ao longo de uma extensa albufeira. O caminho de pedra e terra, nota-se que serviu em tempos para deslocações importantes, talvez até faça parte dalguma via romana. Mas, quando nos aproximamos de Pitões ele vai-se estreitando e acaba por transformar-se num trilho, ponto em que chega a uma ponte, após a qual iniciamos a derradeira subida até aos passadiços que nos levam ao início da aldeia. Tudo isto ainda demora um bocado, já que as forças não são muitas. Esta fase do trajecto tem imensa sombra e não fosse a subida seria um verdadeiro descanso. Mesmo assim, com o barulho da cascata que se anuncia ao longe e as inúmeras águas que vêm descendo pela encosta, é um absoluto refresco. As escadas de madeira/ passadiços entregam-nos à civiização um pouco mais acima, mas antes é altura de molhar-mo-nos da cintura para baixo numa das levadas que passa quase ao cimo. A água está fresquíssima mas vale a pena.

Retomo a viagem até ao povo e ainda consigo correr um pouco até à chegada onde vejo o meu concorrente. Depois desligo, estou de rastos, como algo, bebo, limpo as sapatilhas de todas as pedrinhas que tinham entrado, troco mensagens com a família e decido-me a ficar preparado para recomeçar.


Desta parte lembro-me bem, há que sair do planalto do povoado em direcção ao mosteiro. O sol ainda está forte e eu já levo os braços a arder. Vejo um casal jovem a sair do carro aí uns 100m à minha frente. Dirigem-se para o campo e talvez para a cascata. Apresso-me e pergunto-lhes de raspão se me dão um pouco de protector solar. Tive sorte! E já protegido e contente com mais esta pequena vitória, sigo para o mosteiro. Gosto de passar neste sítio! Os mosteiros são uma pausa no tempo e um requinte no espaço. Enquanto me aproximo, vislumbro um grupo dos 100km cque já várias vezes passei e vice-versa. Eram dois mais um e esse um, pensei eu que seria o tal corredor que me ultrapassou a caminho de Pitões, porque já antes os tinha visto juntos. Eles iam a andar e eu passei por eles e jocosamente mandei para o ar “então,... vão a descansar!?”. A boca não caiu em saco roto pois logo a seguir juntou-se a mim um dos atletas dos 100km que já antes se tinha mostrado particularmente sensível a este género de picardia. Acompanhou-me durante algum tempo, depois desistiu, juntou-se ao seu grupo e eu fui avançando com a noção que ia bem e me afastava a bom ritmo. Eu estava-me nas tintas para os dois dos 100km, mas dava-me algum ânimo imaginar que tinha subido mais um lugar às custas do tal que (eu ainda não sabia) concorria para o 3º lugar do meu escalão na minha prova. Com este sabor na boca fui avançando e aproveitando uma das etapas mais corríveis de todo o percurso para dar-lhe algum gás. Quando nos aproximávamos da próxima aldeia, apareceu mais uma lebre no meu horizonte. Consegui alcançá-lo – também era dos 100km, bem mais novo que eu e curiosamente de Aveiro. Assim, mantive-me com ele durante algum tempo, fomos conversando. Dos outros nem sinal, de forma que me sentia confiante.


Nestas corridas também há lugar a boas e excelentes notícias e a melhor delas foi quando cheguei ao posto de abastecimento de Frades e como era Frades teria de ser o último antes da meta. Ora eu estava a contar com mais um, mas sendo assim, estava perante a última etapa e portanto menos kms e portanto ainda iria chegar de dia! Isso fez-me super motivado e depois de encher uma das garrafas - 500ml deveriam chegar – e armazenar um pouco de batatas fritas para o sal num saquinho, fiz-me ao caminho acrescido de ânimo e vontade de chegar. É pena não ter tido o relógio a funcionar, mas para mim, ainda fiz alguns kms na casa dos 4min/km o que nesta fase do campeonato não é nada mau! Tive no início mais um companheiro dos 100km mas também se deixou ficar para trás. Com efeito, já não era ultrapassado por ninguém desde a etapa de Pitões.


Não é por nada que já disse que me sentia, naquele final de prova entre Frades e Montalegre, como se estivesse a fazer o 1º treino do dia – ok, pode ser um pouquinho exagerado, mas a verdade é que me sentia fresco, vital. E os números não mentem: em 3 edições de prova nos 50, 100 e nas 100 milhas, foi nesta última edição que consegui o melhor tempo, roubando 1 min a 2022 e 12 min a 2021.


Apesar de tudo ainda demorou, na minha impressão, a chegar aos arrabaldes de Montalegre. E quando se chega e se começa a ouvir ao longe o alarido dos apresentadores, na verdade ainda há uns obstáculozitos pela frente. Na 1ª edição isso foi muito frustante, mas uma vez conhecido, é aceite e passa a estar incorporado no jogo metal de antecipação. Portanto desce-se ao rio, depois tem-se uma subida íngrime por um bosque/floresta que parece não acabar, até que se chega ao topo e tem-se vista para a barragem do Alto Rabagão – quase dá para ver o parque de campismo – e aí pensamos (na 1ª vez) mas o que estamos a fazer aqui!? Portanto, depois inicia-se a 2ª aproximação a Montalegre de sul para norte, suponho, por um estradão de terra batida ainda durante uns 3km, até que se deixa o estradão e se desce pela floresta para a cidade. Entramos na cidade, perto de uma superfície comercial e sobe-se para o centro e já se reconhece o caminho para o centro histórico, mas quando pensamos que finalmente vamos atacar as ruazinhas que nos levam ao castelo, temos mais um desvio que nos faz voltar a subir e a entrar novamente na floresta e fazer um pequeno laço antes de voltar a descer por um corta fogo super inclinado, para voltar exactamente ao mesmo sítio de há pouco! Ufa... sempre me pergunto para que é isto,.. será jogo psicológico, será pela altimetria, será pela distância? Uma coisa é certa, na minha opinião deveria haver alguma espécie de controlo naquele último laço, pois qualquer um, se o entender, por preguiça, desespero ou engano, pode, naquela altura da prova, fazer-se desentendido e passar ao lado daquele último berbicache.


Em todas as edições, a 1ª foi a única em que chegado à passadeira vermelha da meta – que este ano não havia, embora a subida estivessa lá à mesma – a não ousei fazer a correr com medo que me desse uma daquelas cãibras de gesso. Na 2ª edição já correu melhor e nesta ainda deu para acelerar. Este ano moveram a meta uns 30m para a frente, portanto sobe-se a colina do castelo e depois plana-se para a meta e assim fiz, mas dada a hora ou o frio que estava, não havia quase espectadores, nem nas ruelas do centro, nem no castelo.

A maior surpresa que ainda tive para digerir foi que na meta estava o meu parceiro das 100 milhas, da minha classe etária e que portanto ficou com o 3º lugar. Deu-me os parabéns; tinha chegado um minuto e meio antes de mim e eu fiquei de boca aberta sem saber o que dizer nem explicar, na minha mente, como tal se tinha operado!

Mais tarde, pois fiquei por ali a conversar e tirar umas fotos, chegaram os dos 100km que eu tinha ultrapassado pelas alturas do mosteiro de Pitões e esclareceram-me que não era ele o 3º elemento do grupo. Ou seja eu tinha visto mal ou melhor imaginado mal, pois nem sequer me tinha voltado para trás, assumi simplesmente e o meu oponente já ia mais à frente. No entanto eu estava a apertar e mais uns kms tê-lo-ia alcançado. E assim, com esta conclusão a meu favor, tudo ficou serenamente resolvido.


Se pensam que a aventura termina aqui, engam-se, aqui começou um pequeno calvário, fruto do estado corporal após 33:05 de exercício, do frio que se fazia sentir e das confusões que se foram gerando, a principal sendo não me lembrar onde tinha a chave do carro! Mas, com calma, tudo se resolveu. Levantei os sacos de vida que a organização transporta para a meta, aí comi uma sopa quente que ajudou a levantar a moral e ainda adicionei um sandes de presunto e um copo de vinho, no único café aberto a caminho do parque. Foi importante, estava quentinho e apesar dos olhares que me deram, como se fosse um intruso naquele espaço familiar de jogadores de cartas, serviu de aconchego. Tomei banho no parque e pelas 23 estava na tenda a comer o resto do jantar de 5ª e pronto para dormir. 

100 milhas

Meses de suor

pela mãe terra lua;

luzes que correm



sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Piozinho

A imundice é já ocidental e prepara-se para mais um fim de dia angélico.
Obrigado nós vamos observar o espectáculo daqui de cima destes rochedos, cientes do inumano desfecho e mesmo assim laranja lindo há que reconhecer.
Há dias em que os bares não fecham e os comboios avançam nostálgicos por entre a floresta.
A escuridão é uma senha de presença na juventude tão perto que morde e cresce ramos húmidos.
Advinham-se as poças pelo escasso reflexo da luz.
Chega qualquer coisa anónima maternal desce como poalha no céu negro constante.
Nada resulta das preces alheias apenas nós contemplando os últimos pássaros antes da noite.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

On The Awareness Of The Sky

On the awareness of the sky, dark
as a black angel. As I
lay my head on your skin, eyes
deeply closed
the glimmer of apple stars
the moisture of cinnamon lips

Unfold the taste of rain. Blur
memories off my book. Engage me
into the finest love transfusion
Now

© 2018, José Coelho


quinta-feira, 4 de outubro de 2018

This Big Vertigo


This Big Vertigo

It's hard to make out until where
the horizon is

Let us think of that turgid, shapeless thing
penetrating. In us

landscapes of concave breasts, clay
hoisted sails beseeching

far away, the sea
so far, it's just about smell, sometimes

there are names that rise and stand up
hurt, full of pride

between us and the horizon
the big questions

formulated in dreams' matter, slide
warm by the sand without even touching it
and we carefully. Let's think

about the shadows that were synonyms
of light - quasi mass
only -

and about the mountains that often
were born, skimming the sky in gray whirlwinds -
come join us, die as happy as these
stones – one would feel the great
vertigo

hot - pulsating delirium and saddened
ties in the wind -
close, so close it swallowed
the hours, the feeling. Today

it's hard to see it clearly.

© 2018, José Coelho



segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Apenas a Tua Morte


Odeio a morte dos outros. Reprovo-a
fisicamente. Toda e qualquer tentativa de
entendimento falha perante o colosso da ausência que nunca enterrei.

Habita-me um desejo redondo que me faz morder
a própria carne. Refugo de lembranças
vagueiam-me pelo cérebro - coisas que pensam
por si e fingem ser a sério. Confundem-se,
confundo-me.
Apenas a tua morte me interessa e essa foi-o
Singularmente.

© 2018, José Coelho

Home

It's good to be back home. Unless lost or a place you can't reach. The lemon tree welcomes you with the gift of slow yellow weights. The furniture's cedar odor waking basic definitions, memory cells you turn on. The shades on the floor, the whiteness of ceilings, the corridors leading nowhere because such emptiness exists. At night your face becomes a reality, moon printed, it grounds the sadness of desire. My body sleeps.

© 2018, José Coelho